sábado, novembro 17

Teoria e Prática
AMERICAN GANGSTER, de Ridley Scott



À partida, quando um filme se proclama "baseado em factos verídicos", o espectador já sabe que a espinha dorsal de verdade com que pode contar é muito fina. Pessoalmente, não deixo que algo como adulteração de factos perturbe a apreciação de um filme pelo trabalho cinematográfico que é.

No entanto, AMERICAN GANGSTER toma demasiadas liberdades com o material de fonte. Frank Lucas foi um traficante de droga notável no Harlem da década de 70. Com origens muito (mas mesmo muito) humildes, numa zona rural dos Estados Unidos, Lucas recorria à criminalidade antes de sequer saber o que a palavra significava (também é certo que nunca passou uma semana na escola). Depois de chegar a Nova Iorque, conseguiu encontrar um caminho ao ser protegido pelo gangster Bumpy Johnson (um personagem já interpretado em dois filmes por Laurence Fishburne). A notoriedade de Frank Lucas deve-se ao seu esquema de importar heroína, na altura do conflito do Vietname, do Sudeste Asiático para os Estados Unidos, escondendo-a nos caixões de soldados americanos mortos. Algum tempo depois foi preso, e algum tempo depois ainda foi libertado antecipadamente, por colaboração com as autoridades.

Claramente Frank Lucas é um personagem desprezível. Sem as limitações de uma educação moral, sentiu-se livre de matar e violar todos os obstáculos que o separassem da riqueza. Mesmo quando colaborou com as autoridades, fê-lo apenas por salvaguarda pessoal, já que agora que está em liberdade se recusa a admitir ter entregue ex-associados à lei. A consciência não lhe pesa por ter facilitado o comércio de uma substância concentrada e perigosíssima, mas apenas por ter sido obrigado a engolir o orgulho e a trabalhar para a polícia.


Os verdadeiros Frank Lucas e Richie Roberts, consultores no filme


No entanto, o Frank Lucas interpretado por Denzel Washington é um verdadeiro samurai, um homem com princípios bem definidos, com uma meta clara, e com a disciplina para alcançar essa meta. O único erro de "Zen-del" é atribuído a outra pessoa: a esposa oferece-lhe um fato demasiado espampanante que atrai a atenção das autoridades. Mero detalhe que na vida real Frank Lucas tenha comprado o fato de chinchila por si mesmo, e que o seu modo de vestir não tenha sido tão austero como o filme nos faça crer.

O prestígio e a mestria de Ridley Scott, independentemente de escorregadelas isoladas, não serão nunca postas em causa. No entanto é notória a sua fraca capacidade de comunicar com actores. Quando a isto acresce o facto de Scott não ser nada experiente no que toca a personagens principais repreensíveis, talvez se possa adivinhar a origem de semelhante despropósito na caracterização de Frank Lucas.

Mas tudo isto é fácil de perdoar. É fácil de perdoar quando confrontados com o bom estudo de espaço de Ridley Scott. Fácil de perdoar com a reprodução de período impecável (não nos tenta assombrar, e nem nos permite duvidar). Até mesmo no último minuto é fácil de perdoar, naquele último plano em que Frank Lucas é confrontado com um mundo ao qual já não pertence, ao qual já não se ajusta.

AMERICAN GANGSTER é um bom filme. Não é excelente, nem mesmo quando não se tenta desembrulhar o pacote. Mas é um bom filme, e no final das contas, isso não é assim tão fácil de conseguir.

Para quem quiser arriscar que o filme perca um pouco de brilho, fica aqui o link para o artigo que lhe deu origem:
The Return of Superfly, de Mark Jacobson

2 comentários:

Luis Folião disse...

Este filme mostra correctamente como a droga não traz saúde a ninguém, apenas arruina a vida de milhares de pessoas, enquanto os barões da droga enriquecessem sem esforço. Temos que ver, no entanto, que na altura em que a acção do filme se passou não era fácil ser jovem (nunca é, não é verdade?)e de raça africana nos EU da A, e Franck Lucas teve que fazer os possiveis para ajudar os seus irmãos e a sua pobre e querida mãe. Por outro lado, nesse texto que o amigo Pato linkou, dá para ver que Lucas buscou a Salvação junto a Deus durante a sua estadia na prisão, o que o ajudou a comprar um lugar no Céu.
Bem Haja

marta disse...

hm, ok, factualmente impreciso.

mas perdoem o homem..

eu até gostei bastante daquela dicotomia bem-que-não-é-bom vs mal-que-não-é-mau.....